REPORTAGEM
Rafaela, 22 anos, afirma não ser de Campinas/SP. Teria vindo de Olímpia, interior de São Paulo. Já na adolescência, diz ter percebido que seria difícil conseguir o almejado corpo de mulher, pois havia nascido menino, um menino que sentia um vazio no peito ao se olhar no espelho. “Então, juntei dinheiro, fui ao cirurgião e pus uma prótese de silicone”.
Rafaela é uma travesti. Sim, no feminino. Apesar de o dicionário classificar a palavra como um substantivo de dois gêneros, elas preferem ser tratadas no feminino – e isso já mostra como ser travesti pode ser complicado.
Claudio Picazio, sexólogo e autor do livro Diferentes Desejos, afirma que a principal diferença da travesti está em sua identidade sexual: “Um homem heterossexual tem identidade masculina. Mesmo um gay, [...] ainda que tenha maneirismos femininos, mantém essa identidade [...]. O homem [...] com uma identidade sexual feminina é chamado de transexual – ele tem nojo do próprio pênis e, muitas vezes, não vê a hora de arrancá-lo, numa operação de mudança de sexo, por exemplo”.
Não é o caso da travesti, diz o sexólogo: “O que ela quer é acrescentar algo [...]. Não é um homem querendo ser mulher, ela é homem e mulher ao mesmo tempo”. Segundo Silvério da Costa Oliveira, psicólogo e membro da Associação Brasileira para o Estudo da Inadequação Sexual (ABEIS), “ao contrário do transexual, [...] a travesti não se sente acanhada de tocar, ver ou ser tocada em sua genitália [...]. Sua genitália faz parte do modo como obtém seu prazer sexual”.
Janaína Lima, 30 anos, é travesti e também conta com a ajuda da mãe para se dedicar aos estudos e outras atividades. Além de ter voltado a estudar, ter completado o segundo grau e agora fazer cursinho, é a coordenadora de travestis do grupo Identidade, uma das maiores associações de luta pelos direitos de gays, lésbicas, bissexuais, travestis e transexuais de Campinas, SP – mas o trabalho é voluntário, e ela tem o vestibular como prioridade: “Estou pensando em meu futuro, pois nem sempre mamãe estará comigo”.
Nada disso importa para Rafaela. “Ser travesti é ser o que você é, 24 horas por dia, sem esconder nada de ninguém”. E como esconder? Loira, alta, quadris e seios fartos graças ao silicone, ela chama a atenção no bairro de Nova Europa, onde mora – mas se engana quem pensa que ela se envergonha disso: “Somos pessoas normais, como todo mundo”.
Entretanto, diferentemente de todo mundo, Rafaela não consegue ter um emprego padrão. “A falta é de oportunidade [...]. É difícil por isso, pelo preconceito. Se me oferecessem um emprego, ou um curso profissionalizante, talvez eu aceitasse”.
O caminho das pedras
Rafaela, então, segue o caminho da maioria das travestis que vêm tentar a vida em Campinas: faz programas, na região do Bosque. Quando lá chegou, foi ajudada pelas travestis mais antigas, que deram dicas e passaram as regras do ponto. “Ninguém tem território, ficam todas espalhadas. E todas são orientadas a não usar drogas”, afirma.
De volta à Nova Europa, Rafaela acorda por volta do meio-dia. Come, às vezes, com suas colegas (mora com uma amiga travesti, e, na casa ao lado, moram mais três), quando geralmente é ela quem vai para a cozinha, ou almoça na casa de alguma vizinha. Travesti? Não, algumas das muitas senhoras com quem Rafaela tem amizade.
É o caso de Neuza Aparecida Godoy Sousa, 55 anos, que a recebe em sua casa com um sorriso. “Ela chega aqui, abraça e beija minhas filhas. E daí? [...] É uma amiga”. Dona Neuza mora na mesma rua há 26 anos e diz que ali, antes das travestis, já foi um lugar muito “barra pesada”, casa de traficantes. “Que bom que agora é ela. Elas são humanas, elas são gente” – e completa: “Quero que ela seja feliz”.
A tarde é o tempo que Rafaela tem livre – para arrumar a casa, por exemplo. “O povo acha que nossa vida é sexo o dia inteiro. Ninguém me vê lavando roupa, limpando o chão...”. Isso feito, é hora de ir à rua pagar alguma conta ou mesmo comprar algo que está faltando, no mercado, no açougue.
Desde a moça da farmácia até o dono da banca, todos a conhecem. Noel de Oliveira, que vende revistas no bairro há dez anos, afirma que nunca teve problemas em ter Rafaela como cliente. “Tem pessoas que olham com um olho diferente... Mas teve gente que até olhou interessado!”, brinca. “Eu tenho minha família e, do mesmo jeito que eu respeito a minha família, eu a respeito”.
Enquanto ele mostra a Rafaela onde está certa revista, clientes entram e saem da banca, indiferentes. Um senhor aparentando 40 anos, ao ser perguntado se a presença de uma travesti o incomodava, respondeu, sem querer se identificar: “Por que incomodaria? Cada um faz da sua vida o que gosta”.
À batalha!
Nem sempre. Fazer programa não é exatamente o ideal de vida de Rafaela, mas foi o jeito que ela encontrou para atingir seus objetivos. Entre eles, ajudar a mãe, que ficou em Olímpia. “Pago todas as contas dela”. Mas ela pretende parar com os programas, um dia. Até casar, quem sabe.
Por enquanto, não. No fim da tarde, Rafaela separa a roupa que vai usar à noite e vai deitar. Levanta-se por volta das 18h30. Toma banho, desfila o vestido na frente do espelho, faz a maquiagem, reza um Pai-Nosso e sai. Aparentemente, não há conflito entre religião e profissão: “A consequência do que estamos fazendo aqui, cada um vai resolver quando for a hora”.
Três quilômetros separam a Nova Europa do Bosque. Ao chegar, Rafaela escolhe uma das esquinas onde fica sempre e torce para não ser agredida. “Tem muito morador que passa, molecada, tacando ovo, pedra. Eles falam tanto da violência e olha aí a violência. Acho que falta um pouco de educação”.
Um pouco acima, numa faixa atravessada entre os postes, lê-se: “Respeitem nossas famílias”. As faixas machucam tanto quanto as pedras. “Não desce um morador pra vir conversar, como se a gente fosse bicho. É uma violência também”, desabafa Rafaela. “Acho que a gente devia colocar faixas com ‘Respeitem as travestis’” – e arremata: “Eu também sou cidadã de Campinas”.
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